Notícia retirada do Jornal da Usp: http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=5297
LEILA KIYOMURA Erro, Madonna, 1984,licenciado por AUTVIS, Brasil, 2009
O Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP apresenta, na sede Ibirapuera, 96 pinturas, desenhos e esculturas que integram a coleção Renault. São trabalhos de 18 artistas de diversos países que utilizam técnicas industriais unindo os mundos da arte e da fábrica. A mostra integra a programação da USP do Ano da França no Brasil, destacando nomes como os franceses Arman e Dubuffet, o catalão Joan Miró e o islandês Erro Logo na entrada da rampa do MAC, um grande painel com uma clássica Madonna chama a atenção do público. Pele alva, o seio ainda de fora que acabou de amamentar o filho nu, todo roliço. Porém, quando o espectador sair desse foco central, vai perceber que a imagem da Madonna está entrando em um carro moderno, com bancos confortáveis estofados de vermelho. O mesmo tom dos querubins que ficam ao fundo dessa pintura criada pelo islandês Guõmundur Guõmundsson, ou Erro, como ficou conhecido.
A imagem convida o público a viajar pela mostra “Uma Aventura Moderna: Coleção de Arte Renault”. E a perceber a arte se fundindo com o design dos automóveis para destacar a estética industrial. A mostra surpreende porque une os mundos da arte e da indústria, valorizando o espaço da fábrica em um universo de criação.
A exposição traz 96 obras, entre pinturas, desenhos e esculturas, de um acervo que nasceu de um projeto da empresa Renault voltado para as artes visuais. “Esta mostra tem importância por várias razões. Uma delas está relacionada à história do colecionismo no século 20 e nos dá um exemplo de mecenato que se voltou para a arte contemporânea e estimulou a pesquisa e a experimentação, reunindo artistas que marcaram época na França”, observa Lisbeth Rebollo, diretora do MAC. “Outra decorre da aproximação, sempre significativa na história da arte, entre a indústria e a produção artística. No caso da Renault e da arte contemporânea, o elo se traduziu na possibilidade de recursos técnicos, em logística e financiamento para o ato de criação dos artistas atuantes no cenário cultural local e internacional.”
Para estreitar as relações entre arte e indústria, Jean-Michel Jalinier, presidente da Renault do Brasil, conta que, no final dos anos 60, a empresa lançou um ambicioso projeto chamado Pesquisa, Arte e Indústria, que se estendeu por quase 20 anos, resultando em um dos mais importantes acervos de arte contemporânea. “A Renault desafiou artistas, alguns ainda muito jovens, para que mergulhassem no mundo industrial e que desse íntimo contato realizassem sua arte com total liberdade de criação.”
Jean Tinguely, Bascule V, 1967, licenciado por AUTVIS, Brasil, 2009
Jalinier explica que os artistas aceitaram a empreitada com entusiasmo e paixão. “O resultado está nas obras assinadas por Arman, Vasarely, Dubuffet, Erro e Tinguely, entre outros. Elas refletem não apenas um momento do progresso e do estilo de uma época, mas também uma consciência crítica social. Nelas, a matéria-prima é o objeto, trabalhado a partir da aguçada observação de cada artista e de sua interpretação estética dos objetos: partes e peças dos automóveis, máquinas e mecanismo de motores.”
Arte como motor – É a primeira vez que a Coleção Renault é apresentada no País. “Todos os artistas que integram a mostra marcaram a trajetória da arte nos anos 1960 e 1970”, afirma Lisbeth. “Jamais tivemos a oportunidade de ver juntos, em uma só exposição, tantos artistas internacionais ligados a esse período da história da arte.”
Importante também é o exemplo da Renault, pioneira em matéria de mecenato empresarial. Uma atitude que colaborou com a afirmação do novo realismo francês, a linguagem pop e a arte cinética. “A história da arte, como a da sociedade econômica, prospera há 40 anos. A arte contemporânea tem hoje total visibilidade”, esclarece a curadora Ann Hindry. “É o motor da sociedade. Em todos os países economicamente desenvolvidos, as empresas disputam os jovens artistas em evidência. Os fóruns arte e empresa multiplicam-se.”
Niki de Saint Phalle, A deusa branca, 1963, licenciado por AUTVIS, Brasil, 2009
A arte, segundo Ann, desceu definitivamente de seu pedestal subjetivo para entrar no domínio da demanda e da oferta. “Essa metamorfose, iniciada no começo do século passado com Marcel Duchamp e os dadaístas, se acelerou no início dos anos 1960, período em que a Renault passou a se interessar ativamente pela arte de sua época.”
Ann lembra que a racionalidade do pensamento modernista cede espaço para um questionamento sobre a reversão dos valores artísticos. “A erosão progressiva dos ideais da modernidade, acoplada à falência do sistema político, ao longo de um século sangrento, preparou o espaço para uma reflexão sem concessão à noção de progresso, noção que é a matéria da arte moderna. A noção de passado e de futuro, das quais se alimentaram as vanguardas, é subvertida pela reivindicação urgente de um tempo presente.”
Uma aventura moderna
Para que o público possa mergulhar nessa aventura moderna, a curadora Ann Hindry dividiu o espaço em quatro núcleos: O Universo Industrial, A Atmosfera Dubuffet, A Pintura Abstrata e A Pintura Cinética. O primeiro núcleo apresenta os artistas transformando elementos industriais em arte. O francês Arman, protagonista do movimento dos Novos Realistas, apresenta quadros que sugerem o movimento repetitivo dos operários com uma série de impressões de objetos utilitários que se amontoam ou se sobrepõem, realçados por pinceladas. Traz também esculturas feitas com peças de carroceria e pedaços de motores.
O suíço Jean Tinguely cria máquinas com aço pintado. Esse mecanismo, essa engrenagem está também nas paisagens em nanquim, lápis e papel. O islandês Erro trabalha com a superposição de imagens, provocando o espectador com um choque estético. Trabalha com imagens do cotidiano, como ilustrações de revistas, histórias em quadrinhos, catálogos de belas-artes, anúncios e ao mesmo tempo com pinturas clássicas de execução primorosa. Contrasta a beleza da nudez das mulheres com o design atraente dos carros.
Interessantes também as esculturas do grego Takis com porcas, bobinas e ímãs. Consegue manipular esses objetos em montagens delicadas com som e movimento. Sua criatividade faz esse universo mecânico se transformar em universo misterioso.
Robert Doisneau, um importante fotógrafo humanista do século 20, tem a tarefa de documentar o dia a dia dentro da fábrica. Apresenta a relação do homem com as máquinas, as tarefas repetitivas que transformam os operários em objetos e, ao mesmo tempo, consegue captar a presença do ser humano em gestos e olhares.
A Atmosfera Dubuffet traz as pinturas e esculturas do francês Jean Dubuffet. Seus desenhos a caneta sugerem um gesto automático, impessoal. Ele reproduz, em linguagem gráfica, a tensão e a vida multifacetada. É o homem com suas inquietações se fundindo com a disciplina da máquina.
No terceiro núcleo, Pintura Abstrata, o visitante é envolvido pelos desenhos do espanhol Joan Miró. Na obra Mulher pássaro, com imagens que remetem às pinturas rupestres, o visitante respira aliviado. Nas linhas suaves da mulher que dança e voa, o homem volta a ser ele mesmo com seus sóis e estrelas.
Há também as cores do norte-americano Sam Francis. O branco, o vermelho, o amarelo, o preto explodem em manchas na tela. Uma pintura que repercute no espaço com uma vibração delicada.
O chileno Roberto Matta propicia um universo que repercute a luz. É uma paisagem que alia a mecânica e o sonho, sugerindo e questionando o conhecimento do mundo. Há ainda a dinâmica do belga Pierre Alechinsky, sugerindo o duplo, o duo, o contraste entre um ser e o outro, entre um mundo e o outro. Cada um com as suas próprias cores e os seus próprios limites. Os fragmentos do francês Jean Fautrier sugerem a inquietação. Sua obra mexe com a percepção, valoriza o visual e, ao mesmo tempo, a razão. Dominique Thiolat trabalha com telas de grandes dimensões. Os desenhos trazem os vestígios do pintor através das tintas escorrendo. É como se a sua mão estivesse escorregando do quadro. Há ainda as composições de Henri Michaux com sinais, manchas, desenhos mal esboçados, que reforçam a sua tese de que a pintura é um espaço de liberdade.
No último núcleo, Pintura Cinética, o argentino Julio Le Parc trabalha com a percepção visual e a ilusão de óptica. São linhas que se movimentam e se fundem. O húngaro Victor Vasarely brinca com o olhar e a razão do espectador através de formas geométricas que parecem vibrar nos tons e semitons. Ou em cores vibrantes que vão se ondulando, sugerindo um movimento contínuo. Em contraposição à geometria, a nova realista francesa Niki De Saint-Phalle cria esculturas em relevo com restos de brinquedos, utensílios e arames. Traz, na mostra, A deusa branca, uma mulher que, segundo a artista, transformou-se em uma vítima na condição de dona-de-casa e é, ao mesmo tempo, uma figura matricial e geradora de vida.
A exposição “Uma Aventura Moderna – Coleção de Arte Renault” está em cartaz no MAC Ibirapuera (avenida Pedro Álvares Cabral, sem número, Ibirapuera, São Paulo), de terça-feira a domingo, das 10h às 19h. Entrada grátis. Mais informações pelo telefone (11) 5573-9932.